“O homem do conserto não vem?”
A pergunta era a última que Marta me deixara. Escrita num post-it, colada na geladeira, a caligrafia da sardenta me fez lembrar de como era bom o nosso encontro, o “m”, o “e” e o “m” todos grudados por um só movimento de punho – exatamente como era nosso abraço que chamava um beijo e que atraia as pélvis.
Com o tempo, com a realidade imutável daquelas letras tão juntas quanto eu e Marta estávamos – e estaríamos – separados, o retangulozinho amarelo com 22 consoantes e vogais e um ponto de interrogação deixou de ser a última coisa que nos ligava para se tornar a única. Marta se fora há muito tempo.
(dentro da geladeira um vidro de maionese contemplava a beleza de duas quentinhas esquecidas numa prateleira; perto dali, uma platéia de latas de cerveja esperava ansiosa pela minha hora de dormir)
Ainda assim eu continuava a olhar o tal post-it. Sentia uma atração parecida com a de Gal sofrendo de amor em Hotel de Estrelas. “Dessa janela sozinha, olhar a cidade me acalma. Estrela vulgar a vagar. Rio e também posso chorar”. Era bem assim mesmo que eu me sentia: uma mistura entorpecente de saudade, resiliência, perseverança, conflito e distração. Aqueles riscos eram a minha janela, minha cidade, minha estrela. Meu ponto de referência. A última coisa que me atava a Marta.
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Sabe, eu também gosto de olhar as nuvens às vezes. Escolho um ponto de referência, algo bem duro e imóvel, talvez um prédio, talvez um coração, talvez uma lembrança, e se o vento está muito forte ou pelo menos forte o suficiente você consegue ver o céu correr, passar apressado com aqueles chumaços de sonho disforme a reboque. E nessas horas, como o astrônomo que viu pela primeira vez a magnitude do universo se desenrolando por todos os lados e ao infinito, sinto a paz de ser uma centelha, breve e fugaz. O eterno é feito de outra matéria.
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Marta tinha um livro predileto, sacado da biblioteca de seu pai quando ela era ainda apenas uma guriazinha loura, sem esfolados na alma. Lia Fernão Capelo Gaivota todos os anos se esbaldando em nostalgia real e sabedoria questionável. Eu gostava de algumas alegorias do livro, aquela coisa de voar e voar tentando sempre atingir o nível de excelência seguinte. A ruptura. A coragem. Gostava do que ela me contava, sendo exato.
Um dia Marta se chegou pra mim no corredor de casa e fez menção de falar, mas só chorou. Um choro quente, salgado além da conta [os intervalos entre um pranto e outro interferem na salinidade das lágrimas?], interrompido por suspiros bem infantis. Como que para anular a impressão, Marta se recompôs, passou para as costas uma mochila que o criado-mudo escondera e falou olhando bem para mim:
“Vê se chama alguém pra ver esse barulho na geladeira, de noite fica insuportável…”.
Tirou um chaveiro do bolso, abriu a porta, deixou a chave no criado-mudo e sumiu.
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* Vôo rasante é o primeiro texto produzido na oficina literária ministrada por Evandro Affonso Ferreira e Juliano Garcia Pessanha, no Espaço Revista Cult.